Páginas

Zilfran Fontenele

A EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO RACIAIS E O PAPEL DO ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA

Zilfran Varela Fontenele
Prof. Ass. IFRN


Como resultado da Lei 10.639/2003, em 2004 foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação – CNE as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro Brasileira e Africana - ERER (BRASIL, 2013). Vale ressaltar, que, mesmo sendo resultado das conquistas alcançadas com a Lei 10.639/2003 e enfatizar as questões ligadas à História e Cultura Africana, o texto aborda questões indígenas e por analogia, estas diretrizes se aplicam a todas as etnias. Apesar de a Lei 11.645/2008 ser posterior, estas orientações se aplicam à suas demandas.
O documento traz orientações para a promoção de um ensino de História que possibilite a garantia da inclusão afirmativa da História e Cultura Afro Brasileira e Indígena nos currículos escolares.
Estas conquistas resultaram da mobilização e resistência de movimentos sociais de negros e indígenas, mas também de mulheres e outros, que ganharam respaldo na Constituição de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação – Lei 9394/1996.
As Diretrizes para a ERER (BRASIL, 2013) são destinadas aos diversos segmentos que compõem os sistemas de ensino, públicos e privados, com a pretensão de dialogar sobre:

[...] às relações étnico-raciais, ao reconhecimento e valorização da história e cultura dos afro-brasileiros, à diversidade da nação brasileira, ao igual direito à educação de qualidade, isto é, não apenas direito ao estudo, mas também à formação para a cidadania responsável pela construção de uma sociedade justa e democrática. (BRASIL, 2013, p. 497)
As Diretrizes para a ERER (BRASIL, 2013) têm como meta a garantia de que todos os cidadãos, independentemente de sua ascendência étnica, tenham acesso à educação em todos os níveis de ensino, em escolas com instalações adequadas e professores qualificados para lidar com e evitar situações de racismo e discriminação, capazes de conduzir, segundo estas diretrizes, a uma reeducação e reconstrução das relações entre os diferentes grupos étnico-raciais que compõem a sociedade brasileira.
O parecer procura oferecer uma resposta, na área da educação, à demanda da população afrodescendente, no sentido de políticas de ações afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de reconhecimento e valorização de sua história, cultura, identidade. Trata, de política curricular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas oriundas da realidade brasileira, e busca combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente os negros. Nesta perspectiva, propõe a divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial – descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos – para interagirem na construção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada. (BRASIL, 2013, p. 498)
A demanda é por um ensino de História voltada para a interação de diferentes matrizes culturais, fortalecendo as relações inter étnicas a partir do reconhecimento, incentivo ao sentimento de pertença, diálogo, respeito e integração, necessários ao convívio harmônico de cidadãos iguais que se respeitam em um ambiente democrático.
Ainda segundo as Diretrizes (BRASIL, 2013), existe uma demanda para que Estado e sociedade ofereçam reparações aos danos psicológicos, econômicos, políticos, educacionais e sociais sofridos por afro descendentes e indígenas, vítimas do sistema escravista que funcionou no Brasil entre os períodos colonial e imperial e que mantém sequelas em nossa sociedade. Estes danos foram causados também por políticas públicas de incentivo ao “branqueamento” da população voltada a um suposto desenvolvimento nacional, atribuindo atrasos econômicos e sociais no país à grande quantidade de negros, indígenas e mestiços, impondo ainda a noção de que beleza, inteligência, desenvolvimento e até mesmo de higiene, estavam associados aos brancos.
As sequelas mais graves destas construções históricas estão presentes no racismo enraizado em concepções aparentemente naturais, como padrões de beleza associados a cabelos lisos e claros, propagandas que colocam brancos com uma intensidade maior que negros, ou brinquedos e bonecas que raramente não têm a cor clara.
Diante do exposto, observamos a necessidade de um ensino de História com o olhar voltado para a diversidade e a inclusão, que supere temas tradicionais como diferenças de classes motivadas por fatores étnicos, capacidades cognitivas diferenciadas ou deficiências físicas e intelectuais relacionadas a questões de etnia. Faz-se mister levar para a sala de aula um ensino de História que incentive a inclusão das diversidades inerentes à realidade brasileira, não só no âmbito da etnicidade, mas em questões de gênero, ideologias e religião.
Desta forma, especialmente através da LDB (Lei 9394/1996) e da Lei 11.645/2008, busca-se um ensino que valoriza a diversidade presente na sociedade brasileira, pois segundo Certeau (1994), o tempo presente demanda a necessidade de pensar uma “cultura no plural”, considerando diferentes perspectivas, modos de vida e compreensões diversas da realidade, por parâmetros muitas vezes opostos aos dominantes e culturalmente enraizados. Esta realidade requer ainda um ensino de História pautado na desconstrução do mito de uma democracia racial presente em obras clássicas, como Casa Grande e Senzala (FREYRE, 2003), que, além de fomentar uma concepção de miscigenação como instrumento de integração cultural, leva a uma aparente aceitação da dominação associada a uma relação pacífica entre os grupos sociais.
Atingir estes objetivos requer uma integração de diferentes setores da educação, com destaque para a adoção de Projetos Político Pedagógicos – PPP que reflitam o compromisso da escola com estas demandas, associado a um ensino de História que possibilite aos alunos momentos de reflexão que permitam reconhecer a importância dos diversos segmentos sociais na construção histórica e social do Brasil.
A construção de novas propostas pedagógicas para o ensino de história deve, a nosso ver, fundamentar-se nessa concepção de escola como instituição social, um lugar plural, onde se estabelecem relações sociais e políticas, espaço social de transmissão e produção de saberes e valores culturais. É o lugar onde se educa para a vida, onde se formam as novas gerações para o exercício da cidadania. Por isso, fundamentalmente, é um lugar de produção e socialização de saberes. (FONSECA, 2003, p. 101)
Este reconhecimento seria baseado na adoção de políticas educacionais e estratégias pedagógicas direcionadas a um ensino de História que promova a valorização da diversidade nos diferentes níveis de ensino; no questionamento, conforme Munanga (2009, 2005), de relações étnicas baseadas em preconceitos que desqualificam negros, indígenas e mestiços, através de estereótipos, palavras ou atitudes violentas e depreciativas que evidenciem desigualdades na sociedade; valorização e divulgação de processos de resistência desde a época colonial até a atualidade; compreensão dos valores e lutas através da sensibilização ao sofrimento destes grupos e suas descendências, resultados da escravidão, exclusão e preconceitos a que estiveram historicamente submetidos; e a criação de condições para que negros, indígenas e mestiços, possam frequentar os sistemas escolares e não sejam submetidos a rejeição ou exclusão, não sendo desestimulados a prosseguir com seus projetos e sonhos, garantido o direito de ver registradas e abordadas de maneira equânime as contribuições históricas e culturais de seus antepassados.
Esta socialização de saberes deve ser caracterizada pelo diálogo entre as diversas contribuições históricas ou de memórias, conforme Rocha (2014); e incentivo ao respeito pelas diferenças, reconhecimento da igualdade em meio à pluralidade, em um ambiente em que o professor atua como facilitador, incentivando a reflexão dos jovens, e não mais como portador das verdades absolutas.
Desfazer esta mentalidade racista passa pelo reconhecimento de sua existência na sociedade, na escola e nos próprios professores, superando o que Fernandes (2007) define como “preconceito de ter preconceito”. Problematizar o racismo permite que tais práticas sejam identificadas e evitadas. O ensino de História não deve negar aos estudantes o conhecimento e a oportunidade de criticidade de práticas discriminatórias.
Cabe especialmente aos professores de História, reconhecer a dinâmica das mudanças sociais no tempo e no espaço, se reconhecendo como parte integrante de um processo dinâmico que exige que suas concepções sejam constantemente revistas e repensadas, afim de evitar que suas práticas docentes se tornem reféns de ideologias, concepções e práticas que se tornaram ineficazes na realidade em que estão inseridos, e que tem mudado mais rapidamente e com mais intensidade nesta era da informação em que as fronteiras do conhecimento são cada vez menores.
Um importante desafio neste sentido é a aproximação das universidades com a as escolas, reduzindo os espaços entre a teoria e as práticas docentes, além da participação cada vez mais efetiva dos professores na construção de currículos que “evidenciem as contradições e conflitos existentes na escola e no mundo acadêmico, questiona e desconstrói saberes históricos eurocêntricos que ainda hoje funcionam como orientação estereotipada do negro e do índio”. (FERRAZ, 2011, p. 29)
Por fim, vale ressaltar que estas diretrizes possuem dimensões normativas e orientadoras que visam oferecer referências e critérios para a implantação de ações positivas, sem, contudo, estar fechadas em si, permitindo que estas orientações sejam referências ou pontos de partida, mas que estão abertas a reformulações em caso de necessidade, para um melhor cumprimento de seus fins. Além disto, segundo estas diretrizes, o cumprimento da Lei não é atributo exclusivo do professor em sala de aula, “devendo haver também o comprometimento solidário dos vários elos do sistema de ensino brasileiro”. (BRASIL, 2013, p. 510)

Referências
ABUD, Kátia Maria et. al. (Orgs.). Ensino de História. Idéias em Ação. São Paulo: CENGAGE, 2010.
BARCA, Isabel. (Org.). Educação e Consciência Histórica na Era da Globalização. Braga: Universidade do Minho, 2011.
__________ . (Org.) Estudos de Consciência Histórica na Europa, América, Ásia e África. Braga: Minhografe, 2008.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional de Educação. Câmara Nacional de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica / Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.
__________ . Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais:Ensino Fundamental. Brasília: Ministério da Educação/ Secretaria de Educação Média e Tecnológica, 1999.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano – Artes de fazer. Tradução Ephraim Ferreira Alves. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
__________ . A cultura no plural. Tradução de Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus, 1995.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Gallardo. Lisboa: Difel, 1988.
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global, 2007.
__________ . A integração do negro na sociedade de classes. v. 1. 3. ed. São Paulo: Ática, 1978.
FERRAZ. Maria Cláudia de Oliveira Reis. Por que estudar a África na escola? In: OLIVEIRA, Cristiane Gomes de (Org.). Escola, Culturas e diferenças: experiências e desafios na educação básica. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2011. p. 25-40.
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de História:Experiências, reflexões e aprendizados. Campinas, SP: Papirus, 2003.
__________ . Caminhos da História ensinada. Campinas, SP: Papirus, 1993.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 4 ed. São Paulo: Global, 2003.
MUNANGA, Kabengele (org.). Superando o racismo na escola. 2 ed. Brasília: MEC/SECAD, 2005.
__________ . “Ação Afirmativa em benefício da população negra”. In: Universidade e Sociedade. Revista do Sindicato ANDES Nacional, nº 29, março de 2003. pp.46-52.
__________ . Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil: Identidade Nacional Versus Identidade Negra. Petrópolis: Ed. Vozes, 1999.
ROCHA, Helenice. A presença do Passado na aula de História. In: MAGALHÃES, Marcelo [et al] (Orgs.). Ensino de História: usos do passado, memória e mídia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. p. 33-52.


2 comentários:

  1. Caro Zilfran;
    não deveria ter leis pra ensinar outros temas também, tipo cultura japonesa ou oriental arábe? o que vc acha?
    obrigado,
    Rivaldo

    ResponderExcluir
  2. Olá Zilfran saudações companheiro acadêmico.
    Desde já, saliento a importância de sua pesquisa dissertativa para o ensino de História.

    Minha pergunta gira em torno de um conceito citado por Pedro Paulo Funari em sua obra "Temática Indígena na Escola", ele fala que para desempenharmos bem o ensino de História e Cultura indígena, devemos potencializar o que ele chama de "Experiência Etnográfica", porém não discuti esse conceito como gostaria. VocÊ acha que isso é o que falta em nossas escolas brasileiras?

    Joilson Silva de Sousa.

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.