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Miriam Ribeiro

HISTÓRIA, ENSINO DE HISTÓRIA E A PRODUÇÃO DO HERÓI: EM GOIÁS, TAMBÉM TEMOS UM
Miriam Bianca Amaral Ribeiro
Doutora em História UFG

Este texto compõe a pesquisa em andamento “Cultura Histórica e História ensinada em Goiás (1934-2005)”, vinculada ao DHUCA, Diálogos Humanidades, Ciência e Aprendizagem – Núcleo de Extensão e Pesquisa, da Faculdade de Educação da UFG. Trata-se de uma investigação das relações entre nação e região na constituição e afirmação dos projetos de poder em disputa e as tarefas colocadas para o ensino da história, nesse contexto. A delimitação temporal está assentada sobre a publicação do primeiro livro didático sobre história de Goiás, para crianças (Goyaz, coração do Brasil, de Ofélia Nascimento – Ed. Oriente: 1934) e dois antes da publicação de nosso livro didático sobre o mesmo tema, também para crianças (Redescobrindo Goiás, FTD: 2007).
Quem ensina história no Brasil convive com um emaranhado de grandes datas, grandes heróis e grandes fatos que, mesmo diante de tantas discussões teórico-metodológicas como as que se acumularam ao longo das últimas décadas, insiste em se colocar como um quase sinônimo de aula de história. As salas de professores do Ensino Fundamental e Médio ainda são decoradas pelos imensos calendários com datas comemorativas que povoam o cotidiano da sala de aula, das quais os livros, o professor, alunos e seus cuidadores ainda estão quase reféns. Ao lado dos calendários, não raramente encontramos um painel de ‘vultos’ nacionais.
Isso não é um acaso e sim um projeto político elaborado nos meados do século XIX, quando, na pós-colônia e recente império, urgia elaborar um projeto de nação que convencesse a todos os membros da suposta nova nação – o novo homem brasileiro – que tínhamos o destino da grandeza. Um povo sem cultura e memória históricas oficiais poderia se achar capaz de elaborar histórias diversas, sob diferentes matizes e interesses, colocando em risco o trunfo da unidade política e territorial, além de fragilizar o controle deste mesmo povo.
Fazia-se necessário e premente elaborar, sistematizar e ensinar uma história que fosse, ao mesmo tempo, suporte para a manutenção do poder imperial e instrumento a serviço do ‘apaziguamento’ das lutas internas, dos movimentos sociais de toda ordem, que ameaçavam a execução do projeto de nação unificada. Essa tarefa foi cumprida pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e pelo Colégio Imperial D. Pedro II, que, respectivamente, inventaram e ensinaram a história encomendada pelo império. Entre os instrumentos interpretativos dessa história, algumas datas foram inventadas para serem seus marcos temporais e políticos desta, identificadoras de alguns grandes feitos somente realizáveis por alguns grandes homens que mereceriam 'entrar para a história' e serem reverenciados.
De lá para cá, sempre que as forças hegemônicas do Estado Nacional precisam reunir forças para garantir a manutenção de seus projetos, o ensino de história é convocado para dar esse suporte, para elaborar o convencimento. Foi assim, então, no Império, foi assim no Estado Novo e na ditadura civil-militar instalada em 1964. Entender esse trajeto da história ensinada no Brasil nos ajuda a não reproduzir, nos dias de hoje, esses mesmos rituais.
Para que isso possa ser dito hoje, já faz um bom tempo que pesquisadores e professores  tem-se debruçado sobre esse objeto: o ensino de história. Longe de uma visão maniqueísta da história ensinada e de seus atores, que identifica bons e maus, certos e errados, bonitos e feios, bandidos e mocinhos, trata-se de compreender os porquês. Não se trata de realizar julgamentos, trata-se de construir explicações científicas. Somos todos sujeitos e objeto desta educação.
Alie-se a isso, dois outros elementos: o desenvolvimento da historiografia brasileira, que tem nos proporcionado novas leituras sobre novos e antigos temas e o avanço das discussões teórico-metodológicas que nos trazem abordagens e conceituações que nos fazem repensar o que é, enfim, a história e daí, seu ensino. Portanto, a produção de uma compreensão do significado historicamente contextualizado da história dos grandes feitos, grandes datas e grandes heróis (e do nosso ponto de vista, sua desconstrução), é tarefa componente de nossa formação de historiadores e professores.
Hoje, alguns dos componentes mais arraigados desta história ensinada a partir do Império e ainda presente em nossa cultura histórica, já foram objeto da investigação científica e já se encontram desconstruídos. Vamos citar apenas um deles: o 'descobrimento' do Brasil. Ninguém mais fala em 'descobrimento' do Brasil, para se referir ao confronto de culturas ocorrido no século XVI, sem que isso remeta ao uso de aspas ou de uma explicação que rediscuta essa terminologia. Por um conjunto amplo de razões, falar em 'descobrimento' como tal, revela, no mínimo, ignorância, para não falar em eurocentrismo, preconceito étnico e cultural, entre outras tantas possibilidades.
Ocorre que é uma luta desigual, como desigual tudo é numa sociedade de classes como a nossa. Enquanto pesquisadores e professores, não raramente a mesma pessoa, levamos anos... Décadas para demonstrar de onde vem a história inventada e contada desde o império brasileiro, uma campanha midiática reedita a história produzida pelo IHGB. Foi assim nos '500 anos' de Brasil em 2000. Seria óbvio de não fosse trágico. Se dizemos que o Brasil tem 500 anos, comemoramos isso com relógios e eventos, reafirmamos o que o IHGB dos tempos imperiais elaborou: antes do português, com sua moderna superioridade, não havia civilização por essas paragens. Para ser uma grande nação é preciso desconsiderar o 'selvagem' como membro da nação, até que ele se integre plenamente ao projeto, assumindo seu lugar subalterno até a extinção. Antes disso, tudo é apenas natureza: gente, bicho e planta. Não é demais lembrar que nas 'comemorações' dos '500 anos', índios, camponeses e estudantes foram devidamente punidos quando manifestavam sua interpretação dos acontecimentos. Não é demais registrar que o caderno especial “ Páginas da História: o retrato de um povo tradicional e contemporâneo” do jornal ‘O Popular’, diário de maior circulação em Goiás, publicado como encarte em dezembro de 2013 e fartamente doado às escolas públicas, traz em sua apresentação: “O percurso da formação de Goiás e de seu povo começou no final do século 18, com a chegada dos bandeirantes atrás do ouro (...).” Ou seja, antes dos bandeirantes não havia história em Goiás, como não havia no Brasil antes de 1500.
E aí, chegamos à parte que nos cabe nesse latifúndio: a história de Goiás.
Não é de hoje que se estuda e ensina a história de Goiás, dentro e fora das universidades. Estão disponíveis nas estantes das bibliotecas públicas, nas atividades escolares do ensino fundamental e médio, nos acervos de trabalho de fim de graduação, nos arquivos dos programas de especialização, mestrado e doutorado da área de Ciências Humanas, nos 'sebos' da capital, centenas de obras que tratam de centenas de temas da história regional. Muito já se estudou, escreveu, reescreveu e continuamos escrevendo.
Aqui também há uma história ensinada a partir de um conjunto de interesses em disputa. Um dos elementos mais presentes na cultura histórica regional é a questão da construção de Goiânia e a transferência da capital. Trabalhos consistentes discutiram a Primeira República em Goiás, a Revolução de 1930 em Goiás, a questão das oligarquias e do poder politico, a construção da nova cidade e sua transformação em capital, entre tantos outros temas dele decorrentes.
A ideia de que a Cidade de Goiás não mais comportava as tarefas de uma capital, pelas características do terreno, pela suposta insalubridade, pela pouca água e outros argumentos levantados pelos defensores do projeto de transferência da sede de governo, devem ser pensados como elemento próprio de uma disputa oligárquica. O Palácio Conde dos Arcos, então sede do governo, era uma ilha Ludovico cercada de Caiados por todos os lados, posto que Pedro Ludovico foi içado ao posto de interventor pelas mãos de Vargas, na reordenação do pacto oligárquico que colocou os Caiado nos ostracismo, enquanto até então eram a mais plena expressão do mandonismo local na região. Não há como tratar essa disputa oligárquica como se tivéssemos que escolher de que lado ficar: mudancistas ou não mudancistas, defensores do moderno ou do atraso. Não é a postura de quem estuda a história como ciência.
Ocorre, que, desde 1930, vem se construindo a ideia de Pedro Ludovico como homem à frente de seu tempo, de herói, de grande promotor da modernidade em Goiás, que teria tirado Goiás do atraso, por construir Goiânia e transferir a capital. Sucessivos governos disputam o capital político acumulado por esse procedimento, e para isso, tem que reeditá-lo. Mesmo não se sustentando sob uma investigação histórica e historiográfica, essa história vem sendo contada, recontada, reescrita e ensinada cotidianamente em Goiás, através dos mais variados instrumentos. Por exemplo, em 2010 foi instalada, nos gramados do Centro Administrativo, em Goiânia, uma enorme estátua de Ludovico, com os dizeres ‘Uma trajetória marcada por grandes obras, rupturas, combates, avanços e modernidade. Nesta data, o governo de Goiás cumpre o compromisso  dos goianos de agradecer a cidade de Pedro.’ Não há como detalhar aqui, mas, temos identificado livros de literatura infantil e infanto-juvenil, gibis, revista feminina com o nome ‘Ludovica - a revista da mulher goiana moderna’, livros didáticos, noticias de jornal escrito e televisado, comemorações, distinções e comendas, entre dezenas de outros dados em levantamento e análise, nos convenceram da invenção/produção do herói regional como instrumento de reedição de uma versão da história de Goiás, ensinada dentro e fora das salas de aula, a serviço da afirmação da ideia de história como ação de alguns, superiores a todos os outros, com o endereço político aqui já mencionado.

Referências Bibliográficas
Le GOFF, Jaques. História e Memória. Ed. Unicamp, Campinas:1990.
MONTEIRO, Ofélia Sócrates Nascimento. Goyaz, coração do Brasil. Ed. Oriente, Goiânia:1934.
RIBEIRO, Miriam Bianca Amaral Ribeiro. Resdescobrindo Goiás: a história e a sociedade. Ed. FTD, SP:2007.



3 comentários:

  1. Boa noite Miriam Bianca. Seu texto me leva a refletir sobre as múltiplas histórias locais que temos no Brasil. me lembro de quando dava aula na UEG em estágio, e na abordagem sobre história regional, pouco tínhamos sobre as pequenas localidades. Normalmente, o material disponível refería-se a depoimentos referentes à história das "grandes famílias" do lugar.Então, apenas para provocar, gostaria de saber sobre quais são suas sugestões para sanar esse problema, uma vez que a própria temática sobre a construção de Goiânia já foi inúmeras vezes tratada em trabalhos acadêmicos, e ainda assim perdura a ideia de que Pedro Ludovico é um herói, "um homem à frente de seu tempo"?

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    1. Não nos resta alternativa a não ser insistir em desconstruir o que seja que se apresente como a frente de seu tempo. Nossa tarefa como historiadorxs (to moderna!)é problematizar o que se apresenta como 'naturalmente perdurável' porque será sempre historicamente produzido e portanto, passível de desconstrução.abraço

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  2. Caríssima professora Miriam Bianca, muito interessante e relevante seu texto. Essa imagem do herói continua a nos perseguir, apesar de toda desconstrução que a História nos possibilitou... É preocupante que em Goiás ainda exista a presença de certas oligarquias que buscam a sua legitimação através da invenção e construção de heróis regionais. O seu texto me faz pensar nas centenas de pessoas simples, que não possuem informações críticas para compreender as sutilezas desses símbolos, que tem por finalidade apenas a ilusão de um passado inventado. Como fica tais pessoas que não possuem acesso a academia para serem esclarecidas sobre essas falácias? O que os historiadores e professores podem fazer para tornar suas reflexões conhecidas do grande público sem sofrerem nenhum tipo de sanção ou perseguição, já que se trata de assunto que envolve o poder público?

    Max Lanio Martins Pina

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