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Leonardo Candido Batista

UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE QUESTÕES ÉTNICAS NO ANTIGO EGITO
Leonardo Candido Batista
Mestrando em História Social (UEL)

Atualmente voltou à tona nas redes sociais um debate sobre como eram as pessoas no antigo Egito. Essa é uma questão que sempre aparece, principalmente com as diversas apropriações da mídia. A “novela os dez mandamentos” da rede Record ajudou a lotar de comentários sobre a fidedignidade da produção, já que os atores eram brancos e não tinham quase nenhum negro. As redes sociais ferveram com matérias sobre a herança cultural negra do Egito, que de fato é evidente e inquestionável, mas muitos não tinha uma pesquisa de know-how acadêmico, deixando as matérias muito vagas, com vários buracos e dúvidas sobre o tema. Nesse breve texto tentaremos mostrar como a etnicidade era vista no antigo Egito, e como questões modernas podem nublar nosso conhecimento sobre o vale do Nilo.
Não há dúvidas que o cinema ajudou a difundir a imagem do Egito antigo. A cultura popular se enriqueceu de uma forma inimaginável com a quantidade de imagens e filmes que saíram sobre o tema. Um filme que marcou época foi “Os dez mandamentos” de 1956 dirigido por Cecil B. Demille, com destaca para o famoso e consagrado ator Charton Heston no papel de Moisés e Yul Brynner interpretando Ramsés II. Esse como tantos outros filmes mostrando o Egito, mostram personagens famosos de sua história como brancos, o que levou a uma série de debates de como seriam as composições étnicas no antigo Egito. Os egípcios seriam brancos ou negros? É bom lembrar que essa problemática é um discurso eurocêntrico do século XIX não existiam em qualquer hipótese no tempo dos faraós, e qualquer discussão desse tipo fazem sentidos apenas em debates da nossa temporalidade. Como destaca Kathryn A. Bard (1996) e Andrés Diego Espinel (2006) as questões sobre etnicidade no Egito antigo eram vistas de formas tribais, regionais e locais, ao que pertencia ou não ao vale do Nilo. Sendo assim, povos que viviam fora do território conhecido como Egito eram vistos como manifestações do caos e, portanto, inimigos:
Marcelo Campagno (2005, p. 692) explica que a consolidação dentro do Egito de uma visão de mundo centrada no rei como o fiador da ordem cósmica, que gera uma imagem fortemente negativa de regiões periféricas, concebidas, em contraste, como lugares dominados pelo caos. Tal concepção do mundo afeta a etnicidade, desde que isso tenda a o território político controlado pelo estado vivendo nesse lugar, então diferenças internas serão ignoradas pelo bem de uma ideia de um todo homogêneo, unificado pela articulação da prática estatal.
Diego Espinel (2006, p.430) comenta que tanto as representações canônicas como as profanas da população egípcia, mostram uma entidade homogênea ambas no aspecto cultural e racial. A uniformidade uma representação arquetípica bem definida e estabelecida do que é egípcio, na qual pode não corresponder para a muito mais complexa realidade, na qual diferenças físicas e, em um menor grau, diferenças culturais, entre os habitantes de diferentes partes do Egito deviam ter sido impressionantes.
Kathyrin A. Bard (1996, p.106) explica como o estudo do Egito sempre esteve vinculado com o do Oriente próximo, sendo que ele indecisamente partilha dessas duas regiões geográficas. Por causa de sua localização no continente africano, o antigo Egito foi uma civilização africana, apesar de talvez sua identidade africana ter sido sutilmente minimizada com os estudos do Oriente próximo, na qual têm raízes em no Orientalismo europeu do século XIX. Muitos especialistas trabalhando nessa época, particularmente na época do Império Britânico, assumiram que a história antiga começava com o Egito e a Mesopotâmia, sendo que as primeiras civilizações começaram no Oriente Próximo, e o Egito deveria ser entendida como tal, e não como uma civilização africana. Teorias do tipo, como a de Sir Flinders Petrie, por exemplo, colocavam que o Egito foi invadido por uma raça dinástica vinda de algum lugar do sudoeste da Ásia e assim dando origem a organização desse estado.
A partir desse panorama sempre houve discussão sobre a questão racial no antigo Egito. Muitas perspectivas ainda contêm um pouco do discurso eurocêntrico, outras perspectivas mais africanistas, colocam o Egito como um composto racial inteiramente negro. Deve ficar claro que as coisas não eram tão maniqueístas assim, e esses discursos duais sempre invadiram as discussões sobre as origens da terra dos faraós:
Os antigos egípcios eram povos mediterrânicos, nem negros sub-saarianos, nem brancos caucasianos, mas pessoas na qual a pele era adaptada para uma vida em um ambiente desértico subtropical; O antigo Egito era um caldeirão das raças; pessoas de diferentes identidades étnicas migravam para o vale do Nilo em diferentes períodos em sua pré-história e história. A questão se os egípcios eram negros ou brancos escurece sua própria identidade de povo agrícolas da Kmt oposto a dsrt, a estéril “terra vermelha” do deserto. Kmtsignifica “terra negra” a planície fértil no baixo vale do Nilo, onde colheitas de cereais cresciam em abundância. Não significando “terra dos negros” (BARD, 1996, p.104).
Então é importante lembrar que não existia essas tendências raciais no Egito, sendo completamente anacrônico colocar essa discussão em tal época, é um erro como coloca Kathyrin A. Bard (1996, p.111) com tons suaves racistas que apelam para aqueles que desejam aumentar ao invés de diminuir as tensões raciais existentes na sociedade moderna.
Outra questão a salientar é que a arqueologia e os estudos do Oriente próximo e Egito surgiram nessa perspectiva “Orientalista”:
E, ainda assim, devemos nos perguntar várias vezes se o que importa no Orientalismo é o grupo geral das ideias que domina a massa de material – impregnados de doutrinas de superioridade europeia, vários tipos de racismo, imperialismo e coisas semelhantes, visões dogmáticas do “oriental” como uma espécie de abstração ideal e imutável – ou trabalho muitas vezes variado produzido por um número quase incontável de autores individuais, que podem ser considerados como exemplos individuais de autores que tratam do Oriente (SAID, 2003, p.35-36).
Como comenta Baines e Malék (1996, p.226) a descoberta do túmulo de Tutancâmon, gerou uma nova onda de trivialidades egipcianizantes também nas artes decorativas. Margaret Bakos (2004, p. 87) comenta que outros apropriadores de símbolos egípcios foram movidos por motivos mais simples, com os anúncios comerciais e a busca pela estética criativa, sendo que determinados padrões artísticos distinguiram os egípcios de outros povos, sendo muitas vezes copiados, e os hieroglíficos ficaram como sendo remanescentes de elementos mágicos da mais bela escrita do mundo.
Referências
BAINES, John e MALÉK JAROMIR. O Mundo Egípcio: Deuses, Templos e Faraós Vol II. Madrid: Edições Del Prado, 1996.
BAKOS, Margaret. Arte e Decoração Egípcia. In Bakos (org). Egiptomania: O Egito no Brasil. São Paulo: Paris Editorial, 2004
BARD A, Kathyrin. Ancient Egyptians and the Issue of Race. In: Lelkowitz and MacLean Rogers (orgs.). Black Athena Revisited. North Carolina: The University of North Caroline Press, 1996.
CAMPAGNO, Marcelo. Ethnicity and Changing Relationships Between Egyptians and South Levantines During The Early Dynastic Period. Second International Conference “Origin of the State. Predynastic and Early Dynastic Egypt; 2005.
ESPINEL, André Diego. Etnicidad y Territorio en el Egipto del Reino Antiguo. Barcelona; Universitat Autònoma de Barcelona Servei de Publicacions, 2006.
SAID W, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

11 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Muito legal sua colocação, Ione. Eu conheço o autor sim, foi um dos primeiros textos que li sobre o assunto, mas como eu descrevi no trabalho, essas questões "raciais" são perceptivas modernas colocadas pela historiografia, não faziam parte da cosmologia do Antigo Egito. É importante salientar que eu não busco negligenciar a herança africana da cultura egípcia, sendo que a existência da mesma é inegável. Assim o termo Kmt é ligado a terra negra do baixo Egito, onde existiam as grandes plantações do delta. Infelizmente Ione, uma bibliografia mais ampla e atual sobre o assunto não existe em português, isso acontece devido a fragilidade existe no campo da História Antiga em nosso país, sendo necessário a leitura de livros em outros idiomas. O que é importante ter em mente é que questões "raciais" não faziam parte daquela realidade.

    Atenciosamente, Leonardo Candido Batista

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  3. No texto, Origem dos antigos egípcios, o historiador senegalês, Diop apresenta diversos argumentos para defender a perspectiva do Egito "negro", mestiço. Nesse texto, o autor defende que o termo kmt significa "os negros", literalmente."Na língua egípcia, o coletivo se forma a partir de um adjetivo ou de um substantivo, colocado no feminino singular. Assim, kmt, do adjetivo (...) km = preto, significa rigorosamente "negros", ou, pelo menos, "homens pretos" (DIOP, 2010 p. 22). Você trabalhou com esse autor? Gostaria de saber sua posição em relação a tese defendida por Diop?

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  4. Talita Gonçalves Medeiros4 de abril de 2017 às 14:05

    Olá Leonardo Batista,parabéns pelo texto. Gostei muito da sua proposta, mas tem pontos que eu gostaria de dialogar com você. Mesmo compreendendo que não havia "racismo" no Egito e que se utilizar de tal denominação é anacronico, acredito que quando você se questiona "Os egípcios seriam brancos ou negros?", esse questionamento encontra uma importancia uimpar de além de saber se eles eram brancos ou negros, quem eram os brancos e quem eram os negros? Aqui ale´m de te ensejar uma reflexão sua sobre gênero, estou te propondo uma análise de classe. Claro, você vai me dizer que isso também é anacronico. Mas se você utilizar das categorias interseccionais para refletir além do ser branco ou negro, irá perceber que isso se torna ínfimo frente a todas outras discussões possíveis, seja elas socioculturais e econômicas para descobrir de que valia ou de que importava ser negro ou branco naquele período. Contribui com sua reflexão? Espero que sim, mas estou aberta ao diálogo, caso deseje.

    Um abraço

    Talita

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    1. Tudo bem, Talita? Sempre existe muita polêmica sobre a questão de cor no Antigo Egito. Até porque isso vêm daqueles clássicos filmes hollywoodianos, ou até mesmo de produções recentes como a que eu citei no trabalho, que colocam os egípcios como brancos e todos aqueles outros problemas que vivemos questionado. Eu não procuro em meus trabalhos enxergar os egípcios com cor de pele x ou y, negro ou branco e etc. Como bem sabemos, essas questões seriam anacrônicas para o período, e “racismo” não era uma parte desse imaginário. É claro que os egípcios usavam nomenclaturas diferentes para outras regiões, como o deserto da Líbia, a Núbia e o Oriente Próximo, por exemplo. Essa nomenclatura era algo como “estrangeiro”, algo que não estava no controle da Maat, sendo assim o caos. Eu compreende as questões étnicas no Antigo Egito nessa perspectiva de territorialidade, como a questão das terras negras que eu abordei logo acima. A questão da cor de pele é sempre complicada de responder, mas algumas questões levantadas em uma historiografia mais recente considera uma parte da população egípcia com uma pele adaptada as condições da região. É claro que a existência de pessoas negras existiu, inclusive a XXI dinastia foram de faraós negros oriundos do reino Kushita (Núbia). Pessoas ruivas eram consideras manifestações do deus Seth, sendo assim a existência de pessoas brancas também era presente. É claro que longe daquela ideia de “raça dinástica” vinda da Mesopotâmia, mas não podemos esquecer que existiram vários fluxos migratórios que mexeram com o cenário da Antiguidade. Os Hicsos que chegaram ao delta por volta de 1800 a.C eram oriundos de algum lugar do Oriente Próximo, e aos poucos foram adentrando até formarem sua própria dinastia. Antes disso tivemos as migrações indo-europeias no final do terceiro milênio que gradativamente se espalharam para todo o cenário do Oriente Próximo, chegando também ao Egito. Temos que pensar que as fronteiras étnicas são frágeis e fluídas, sendo que elas podem ser atravessadas facilmente. O Oriente Próximo funcionava nesse sistema de interações, onde pessoas de diversas áreas chegam em novos territórios como artífices, mercenários, trabalhados, escravos, deportados e etc. Esse sistema não se limitou apenas ao Crescente Fértil, sendo que o Egito também teve sua participação. Então a questão da cor de pele são indagações nossas, conotações nessa época são inexistentes. É que já é característico e introjetado em nossa mentalidade pensar dessa forma, sendo que esse assunto é sempre discutido com certa polêmica no caso do mundo egípcio. Seja bem-vinda a qualquer outra pergunta ou comentário, estou aberto a dúvidas, indicações e debates!

      Atenciosamente, Leonardo.

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  5. Muito interessante o seu texto, achei muito esclarecedor e pertinente essa temática. O anacronismo é algo que pode ocorrer de forma sutil, porém devemos ter muito cuidado para não comete-lo ao produzirmos textos acadêmicos na área da História.

    INDIARA OLIVEIRA DE ALMEIDA

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    1. Oi Indiara, tudo bem? Esse é sempre um assunto delicado na qual devemos tomar todo o cuidado. Isso fica mais complicado na Antiguidade, na qual temos dificuldades na documentação, já que a mesma é muito escassa. O historiador deve estar muito atento com classificações que muitas vezes são comuns na nossa temporalidade, mas inexistentes em um mundo tão antigo quanto o Egito.

      Atenciosamente, Leonardo Candido Batista

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  6. Olá, achei muito interessante a sua temática. Na verdade acredito que as pessoas deveriam estar mais interessadas em conhecer sua história, tentar compreender um pouco do que já ocorreu, do que questionar a cor dos egípcios. Eles tiveram papel crucial na historia, acho muito a forma como viviam.Como lá a temperatura era muito quente com sol constante, o fato deles serem negros contribuiria para melhor sobrevivência uma vez, que a quantidade de melanina na pele de um branco é bem menor que de um negro,seria um processo de adaptação, resistiriam mais ao sol sem problemas de pele. Infelizmente, acredito que o assunto cor é muito polemico, embora não devesse ser. Somos todos iguais. Parabéns pelo trabalho.

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    1. Tudo bem, Thayza? Esse assunto sempre será polêmico devido as questões atuais sobre raça e cor. Esse pequeno trabalho propõe não uma nova abordagem, mas uma reflexão de como devemos olhar o Antigo Egito e sua sociedade, sem esse tema clichê de “branco” ou “negro”, sem problemáticas maniqueístas.

      Atenciosamente, Leonardo Candido Batista

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  7. Ótimo material!!

    Jônatas Fernandes Pereira

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  8. Muito Obrigado, Jônatas!!!!!

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