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PROFESSOR EM TERRA ESTRANHA: UMA POSSIBILIDADE DE ESTUDO DA HISTÓRIA DA CIDADE
José Antonio Gonçalves Caetano
Mestre em Educação UEL

Por quantas vezes cruzamos a mesma praça, corremos e andamos pelas mesmas ruas e não damos atenção aos prédios e pessoas que ali existem e que fazem parte, não só da paisagem, mas da História da cidade.
Esse foi o mote para o projeto “Professor em terra estranha”, produzido nos anos de 2015 e 2016 com alunos de dois diferentes períodos de escolarização: sétimo ano do Ensino Fundamental e primeiro ano do curso de Formação de Docentes, ambos no mesmo colégio da cidade de Campo Mourão – PR, colocar os estudantes em outra relação com a sua cidade.
Enxergamos a cidade como potencializador pedagógico e espaço contínuo de aprendizagem, em especial para a História. Bonafé afirma:
estudar a cidade como currículo, ou seja, como “texto” que penetra a experiência de subjetivação nos diferentes programas educacionais dos quais o sujeito participa ao longo da vida. A cidade é currículo, território semeado por velhos e novos e velhos alfabetismos. O sujeito habita a cidade e é habitado por ela. O currículo habita o sujeito e é habilitado por ele. (BONAFÉ, 2010, 442) 
Compartilhamos desse pensamento do autor compreendendo a cidade como dispositivo pedagógico, uma ampliação da sala de aula, uma extensão do currículo.
O projeto aqui descrito foi realizado em dois diferentes momentos, um primeiro no ano de 2015 com alunos do sétimo ano do Ensino Fundamental do período vespertino do “Colégio Estadual de Campo Mourão”, nessa fase participaram cerca de 30 alunos. O conteúdo específico que serviu de base para a turma foi o do Renascimento Comercial e Urbano.
O segundo momento foi realizado no ano de 2016 no primeiro ano do Ensino Médio do curso de formação docente do mesmo colégio, participaram desse momento cerca 45 alunos tendo como conteúdo o uso de Fontes Históricas e o Surgimento das Cidades.
O fato de terem sido trabalhados com dois diferentes grupos de alunos, em etapas distintas da escolarização e em idades diversas, nos revela facetas importantes do sentimento de pertencimento à cidade que os jovens carregam consigo, e diferentes grupos aos quais pertencem. Por exemplo, entre os alunos do Sétimo Ano apareceram lugares relacionados ao lazer consumo próprios de suas idades: adolescentes que começam a possuir uma vida social distante dos pais e a frequentar lugares próprios dos seus grupos de convívio. Dessa forma, apareceram aqui lugares como postos de gasolina com lojas de conveniência, lanchonetes, praças de alimentação, ruas e o Bosque Municipal.
Para o segundo grupo, por entenderem a ligação do projeto com a disciplina de História, os lugares escolhidos foram mais “canônicos” do imaginário histórico da cidade, surgiram, por exemplo, o Museu, o Terminal Rodoviário, a Universidade, a Catedral Metropolitana. A compreensão de que o projeto fazia parte de uma disciplina específica guiou de certa forma a escolha dos lugares pelos grupos, o que não diminui a visão que eles possuem da cidade, a diferença é que tais lugares possuem uma aura mais histórica e fazem parte de memórias coletivas.
A importância em dar o protagonismo dos alunos em elencar os seus Lugares de Memória decorre da importância de reconhecer que cada um possui um mapa mental da cidade, tal como aponta Bauman (2000, 133):
A cidade, como outras cidades, tem muitos habitantes, cada um com um mapa da cidade em sua cabeça. Cada mapa tem seus espaços vazios, ainda que em mapas diferentes eles se localizem em lugares diferentes. Os mapas que orientam os movimentos das várias categorias de habitantes não se sobrepõem, mas, para que qualquer mapa “faça sentido”, algumas áreas cidade devem permanecer sem sentido. Excluir tais lugares permite que o resto brilhe e se encha de significado.
Há algo mais heterogêneo e cheio de “categorias de habitantes” de uma cidade que uma sala de aula? Vale aqui ressaltar uma característica importante do colégio onde o projeto foi desenvolvido. Este se encontra na área central da cidade, é o maior e o segundo mais antigo do município, no entanto, sua localização, História e grandiosidade, não o fazem uma escola elitizada ou destinada a um público seleto de alunos que vivem na parte nobre da cidade, ao contrário, o colégio recebe alunos de basicamente todos os bairros, inclusive dos considerado mais periféricos. Dessa forma, o rol de locais é tão heterogêneo quanto os alunos, pois pertence aquilo que cada estudante conhece e concebe como sua cidade.
Dessa forma na fase final da descoberta da cidade realizada pelo projeto procurou-se visitar, como num passeio cotidiano, os prédios pré-identificados como pertencentes à História de Campo Mourão e que guardam importantes traços da mudança urbana e da memória coletiva.
O passeio iniciou-se pelo terminal rodoviário interestadual de Campo Mourão como num pontapé para a História que gostaríamos viajar. A rodoviária guarda quatro grandes painéis que contam diferentes momentos do desenvolvimento econômico da cidade.
Os demais lugares visitados foram o Estádio Municipal, o colégio onde eles estudam, o teatro municipal, a Igreja do Rito Ucraniano, o Museu, a Biblioteca Estação da Luz, a Catedral Metropolitana, a Boca Maldita e as Praças São José e Getúlio Vargas.
No ano de 2015 o Colégio Estadual de Campo Mourão estava completando 60 anos, por esse motivo foi muito importante incluí-lo, não apenas por ser a escola dos alunos, mas também por fazer parte da História da cidade, como uma das mais antigas e importantes.
O Estado do Paraná, e a região sul em geral, receberam diversos grupos imigrantes de várias partes do mundo, mas em especial a imigração europeia deixou marcas visíveis em muitos municípios paranaenses, com Campo Mourão não foi diferente, a ocupação ucraniana é muito presente por esse motivo colocamos em nosso passeio uma parada na Igreja da Paróquia Santíssima Trindade do Rito Ucraniano e, a partir do prédio discutimos a imigração e, além disso, como os lugares são, muitas vezes, pensados para um determinado grupo.
Maurice Halbwachs ao discutir sobre a memória coletiva e o espaço nos chama a atenção aos lugares que pretendem representar um grupo segundo ele:
Quando um grupo está inserido numa parte do espaço ele a transforma à sua imagem, ao mesmo tempo em que se sujeita e se adapta às coisas materiais que a ele resistem.(...) Não é o indivíduo isolado, é o indivíduo como membro de um grupo , é o próprio grupo que, dessa maneira, permanece submetido à influência da natureza material e participa de seu equilíbrio. (135)
Os imigrantes, por exemplo, quando estabelecidos, criam espaços de socialização que são necessários para manter viva a memória coletiva de seu grupo, nesse caso, a Igreja do Rito Ucraniano funciona como espaço para conservar a cultura, nas palavras de Halbwachs, mantém-se unidos por que “pensam nessas casas e nesses quartos” que deixaram para trás.
A cidade, como afirma Sandra Jatahy Pesavento, é um palimpsesto de temporalidades sobrepostas esperando para serem decifradas, cabe ao historiador fazer o trabalho de investigador desse espaço social e encontrar as variadas histórias escondidas entre as camadas de construções. Ora, qual cidade, por mais jovem que seja não divide espaço com o antigo e o novo? Que não divide a paisagem com o antigo prédio da igreja, do museu, da biblioteca com os novos da prefeitura, das lojas, da escola recém construída?
Isso é bastante peculiar no momento de se preocupar em preservar o patrimônio histórico de uma localidade, procura-se, geralmente, musealizar ou tornar prédios públicos edificações antigas para assim dar-lhes novos usos, dessa forma, o antigo hospital se torna um museu, ou o terminal rodoviário uma biblioteca, por exemplo. Essas são marcas dessa sobreposição de temporalidades que a cidade esconde sob cimento e pedra.
Portanto, buscar com que o aluno entenda essa multitemporalidade implícita no patrimônio arquitetônico foi muito importante. Ainda na parte preliminar do projeto os alunos fizeram pesquisas acerca dos locais, justamente para identificar os antigos usos dos prédios e pensar historicamente a sua mudança.

Conclusões
O Projeto “Professor em Terra Estranha” foi desenvolvido para que os alunos, de posse de seu próprio conhecimento sobre sua cidade, apresentassem os locais que entendiam como primordiais para que alguém de fora conhecesse melhor seu município. Por contar com dois grupos de idades distintas, os locais se diferenciaram no que diz respeito aos seus usos e atribuições, de acordo com a idade e apropriação que cada um faz dele. Foi possível perceber nos alunos uma apropriação do conteúdo proposto, e uma maior aceitação à disciplina de História por parte dos estudantes.

Referências bibliográficas
BONAFÉ, Jaume Martínez. A cidade no currículo e o currículo na cidade. In: SACRISTÁN, José Gimeno. Saberes e incerterzas sobre o curriculo. São Paulo: Penso, 2013. p. 442-458.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou.  2ª ed. São Paulo: Ed. Centauro, 2013.

5 comentários:

  1. Sobre o projeto "Professor em Terra Estranha" e a forma como foi aplicada, gostaria de saber se houve em algum momento a abordagem da evolução das cidades segundo ponto de vista de teóricos de urbanismo, como por exemplo, as modificações das ruas, as implantações dos edifícios e seus estilos arquitetônicos, a modernização dos desenhos de praças etc.?
    Camila Cristina dos Reis de Almeida

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    1. Boa noite Camila.

      Obrigado pelo interesse pelo texto/projeto.

      No projeto não cheguei a abordar esses temas, no entanto, pretendo expandi-lo e trabalhar essas questões.
      Acho extremamente importante discutir como os estilos arquitetônicos, a posição das ruas e praças, fazem parte desse palimpsesto de temporalidade que é uma cidade.
      Veja, a cidade de Campo Mourão é uma cidade planejada, com avenidas paralelas largas em toda a parte central, obviamente que é necessário pensar nessas questões que podem vir a ser discutidas num próximo momento de aplicação.
      Obrigado pela sugestão e ficaria feliz se tivesse dicas de leituras para que possamos dividir experiências.

      José Antonio Gonçalves Caetano

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  2. Boa noite, José Antonio!

    Gostei muito do tema que você aborda enquanto objeto de estudo na educação básica, uma vez que também trabalho cidade e memórias.
    Parabéns, pelo trabalho/projeto!
    Entendi que o objetivo do projeto foi trabalhar com os educando as diferentes temporalidades dos espaços urbanos. Que resultados, nesse processo ensino aprendizagem, foram possíveis obter, além da apropriação do conteúdo e da aceitação da disciplina? Como o trabalho envolve o estudo também sobre memória e como essa fora e é instrumento de uso de dominação e conflito, gostaria de saber: Se foi possível abordar a apropriação desses espaços, enquanto espaços de memória e, portanto, espaços de representação de determinados grupos sociais?

    Rivaldo Amador de Sousa

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    1. Boa noite Rivaldo

      Obrigado pelo interesse pelo trabalho.

      Acredito que o melhor resultado foi levar os alunos, principalmente os do curso de Formação de Docentes, a perceberem a cidade como um espaço de aprendizagem e como extensão do currículo que extrapola a sala de aula, nesse sentido o projeto foi de um enorme ganho.
      Ao pensar a problemática dos lugares, deixei os alunos livres para apresentarem quais eram os seus lugares de memória da cidade, portanto, os lugares elencados faziam parte da memória do seu grupo.
      No entanto, ao propor o passeio pela cidade, e a visita a lugares "canônicos" da memória da cidade, busquei levantar questões a respeito dos sujeitos que são pertencentes aquele local. A título de exemplo, ao visitarmos a Igreja Do Rito Ucraniano, uma aluna negra levantou a questão de que aquele lugar não pertencia ao seu grupo, que não se sentia recebida naquele lugar, ou seja, a quem pertence esse espaço? Quem pode permanecer ali? São questões necessárias que uma aula na rua desperta.
      Agradeço as impressões desprendidas pelo trabalho e tomo como sugestões para uma próxima aplicação

      José Antonio Gonçalves Caetano

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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