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Giovana Martins

ENSINO DE HISTÓRIA AFRO-BRASILEIRA: TEORIA E PRÁTICA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Giovana Maria Carvalho Martins
Mestranda em Educação pela UEL

A experiência e discussões aqui relatadas são resultados do Estágio Curricular Supervisionado realizado no curso de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL) em 2016, com a orientação da Prof. Dra. Ana Heloísa Molina. Este estágio foi realizado com uma turma de Educação de Jovens e Alunos (EJA) no Colégio Estadual José de Anchieta, em Londrina-Paraná. A temática foi o ensino de História da África e afro-brasileira, e nosso grupo optou por abordar a história dos quilombos e sua presença em território paranaense hoje.
Para a realização do trabalho, foi necessária a reflexão de textos relacionados ao ensino de História e à temática. Pensamos a modalidade de ensino em que realizamos nossas atividades, a EJA, que caracterizou-se, tanto no passado quanto no presente, como um denso campo de práticas e reflexões (REIS, 2009). Ela é destinada para aqueles “[...] que não tiveram oportunidades educacionais em idade que lhes era de direito ou que as tiveram de forma insuficiente”. Porém, Sônia Reis (2009, p. 124) salienta que a EJA no Brasil passou por uma série de percalços e que ela é “muito mais produto de esforço e mobilização individual do que de iniciativa do sistema educacional”, já que este coloca uma série de barreiras, desde as condições limitadas de acesso à escola até o espaço físico inadequado, bem como currículos, métodos e materiais de ensino problemáticos.
Pensamos também alguns aspectos do ofício do professor e a importância dos estágios durante a graduação, entendendo que são indispensáveis e enriquecem a formação docente. O estágio na EJA teve o diferencial de proporcionar o contato com uma realidade de ensino diferente, levando em consideração que a turma era composta por jovens de até 25 anos, mas a referência para as atividades era o ensino fundamental. Foi uma experiência enriquecedora na medida em que foi distinta, já que a EJA raramente figura entre as possibilidades de estágio docente em História na UEL.
Cabe pontuar que o ambiente da sala de aula permanece o mesmo, com dinâmicas e cotidiano próprios aos quais o professor deve se adaptar para um bom andamento da aula em todas as modalidades de ensino. Em nossa experiência, foi necessário adequar a linguagem das atividades para que fossem acessíveis, bem como moldá-las para o número reduzido de sete estudantes na turma, o que impossibilitava o desenvolvimento de determinadas propostas – mas favorecia outras, pois foram bastante participativos. Foram necessárias aulas que se relacionassem com a vida dos alunos para que estes se interessassem e levassem experiências positivas de nossa docência. Então, abrimos espaço para expressarem opiniões e relatos pessoais, o que enriqueceu as aulas.
Outro aspecto considerado foi o cotidiano da sala de aula. O autor José Rodrigues (2002) aponta que “a sala de aula, como espaço social, representa um campo plural e permanente de construção de saberes a partir de interações e representações que constituem as estruturas de produção de saberes” (RODRIGUES, 2002, p. 01). Isto se dá pois, apesar de o cotidiano escolar estar limitado pelas normas institucionais e sociais, sua principal característica é a espontaneidade. Assim, a história dos sujeitos, as características geográficas do local onde moram e onde está a escola têm reflexos nas condições sócio-econômicas, em seus modos de ser e agir, e nas percepções sobre escola, trabalho e vida tanto de professores quanto de alunos (RODRIGUES, 2002).
Considerando estas reflexões, desenvolvemos a temática escolhida buscando mostrar aos alunos a importância da memória e também a multiperspectividade da História. Pensamos, então, na presença de escravos no Paraná, menor do que em locais. Em parte, isto ocorreu porque o estado não fazia parte do eixo das economias agro-exportadoras ou extrativistas de grande porte (SILVA, 2008). Mas isto não quer dizer que foi insignificante, e a quantidade de quilombos remanescentes mostra como esta presença é expressiva.
O autor Angelo Priori (2012, p. 48) coloca que a forma mais comum de resistência à escravidão eram fugas. Os escravos se escondiam em locais de difícil acesso, desenvolvendo comunidades e praticando agricultura, artesanato, comércio. Tais locais receberam nomes como “mocambo” e “quilombo”, palavras africanas que significam lugar de pouso ou acampamento, e eram locais de resgate e afirmação da identidade étnica e cultural, em que os quilombolas podiam praticar suas religiões e manter sua cultura. Atualmente, os quilombos permanecem como comunidades pequenas com economia de subsistência baseada no cooperativismo, e as produções incluem mandioca, cana-de-açúcar, arroz, feijão, milho, frutas e legumes. Há ainda a criação de animais, como porcos, galinhas, patos, gado, cavalos (cf. PRIORI et al, 2012, pp. 54-55).
Petrônio Domingues e Flávio Gomes (2013, p. 06) colocam que a temática quilombola envolve debates, e desde as últimas décadas do século XX, as questões da reforma agrária se articulam com as questões raciais. Atualmente, diversas comunidades quilombolas lutam por territórios, e os conflitos existem graças à falta de documentação que comprove a posse de terra (PRIORI, 2012, p. 56). Muitas estão localizadas em áreas de produção agropecuária, outras têm seu território cobiçado por cooperativas. De acordo com a Fundação Cultural Palmares (Ministério da Cultura), existem, no Brasil, 3.524 dessas comunidades.
Esta disputa de terras ocorreu no quilombo Paiol de Telha, em Guarapuava (Paraná). Foi o primeiro território quilombola reconhecido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária no Paraná. Nos anos 1970, 300 famílias foram expulsas por imigrantes alemães, fundadores da Cooperativa Agrária Agroindustrial Entre Rios, grande produtora de grãos. Estas famílias eram quilombolas que habitavam a região desde 1860 quando a proprietária da terra a deixou como herança para 11 de seus trabalhadores libertos. O processo de titulação do território foi aberto em 2005, reconhecido como quilombola em 2014, após décadas de disputas judiciais e de muitas famílias vivendo em situação precária (cf. Terra de Direitos, 2014).
A autora Lúcia Silva (2008) salienta que a vida dos escravos após sua libertação, especialmente no Paraná, é pouco retratada nos documentos. Desta maneira, apresentamos aos alunos uma forma de estudar História que pode contribuir para pesquisar esta população: a História Oral. Trata-se de “uma metodologia de pesquisa que consiste em realizar entrevistas gravadas com pessoas que podem testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modos de vida ou outros aspectos da história contemporânea” (CPDOC, 2015).
Através da História Oral, é possível verificar quais as memórias preservadas pelos quilombolas, bem como costumes e culturas. Para isto, utilizamos como fonte a entrevista com João Paulino, lavrador neto de ex-escravos que conta sua história e sua relação com a escravidão no Brasil. João Paulino mora em Desterro do Melo, Minas Gerais, e seu avô, que não conheceu, foi trazido da África no século XIX e escravizado nas terras da região. Seu pai contava histórias sobre a vida na senzala e os castigos sofridos pelos escravos, dizendo que Paulino nasceu livre graças a “uma senhora bondosa chamada princesa Isabel”, e, desde 2012, ele viaja todo 13 de maio a Petrópolis, levando rosas ao túmulo da princesa. Paulino também escreve poemas dedicados a ela (BRANDALISE, 2015).
A partir da história de Paulino, levantamos discussões variadas e ricas com os alunos, como a importância da História Oral para o estudo e pesquisa em História, especialmente quando considerada a ausência de documentos em muitas circunstâncias, como a história quilombola. Problematizamos ainda sobre a visão que o lavrador tem da princesa. O objetivo foi mostrar que os personagens históricos, por mais que tenham títulos da nobreza, fazem parte da construção da História tanto quanto os cidadãos comuns, que participam da História em seus cotidianos – ou seja, os alunos fazem parte da História e a vivenciam no dia-a-dia.
Além disto, pontuamos o que a historiografia coloca: a princesa foi a responsável por assinar a Lei Áurea que libertou os escravos, mas isto foi motivado por uma série de circunstâncias e pelo contexto histórico em que ela estava inserida. Ou seja, ela não o fez simplesmente por ser “benevolente”. Foi essencial mostrar aos alunos que a História é feita de visões distintas e opiniões diferentes, e que sua multiperspectividade está presente mesmo em situações particulares como a de Paulino.
Sobre isto, concordamos com Isabel Barca (2001, p. 29): atualmente, se reconhece que a existência de uma multiplicidade de propostas explicativas compõe a natureza do conhecimento histórico, dando-lhe um caráter de provisoriedade, pois “a relação histórica entre factos pode ser enriquecida se se trabalhar com mais do que uma perspectiva”, de maneira que “a História dá respostas provisórias porque pode haver pontos de vista diferentes [...]” e porque descobrimos novas relações sobre o passado (BARCA, 2001, p. 39). Foi neste sentido que desenvolvemos as discussões em sala de aula, e os resultados foram satisfatórios, visto que os alunos exprimiram suas opiniões e participaram da aula.
Em suma, o trabalho com a EJA foi uma experiência gratificante, e as discussões apresentadas pelos textos selecionados foram de suma importância para um bom desenvolvimento e reflexão da prática docente no estágio. O mais satisfatório foi ver os alunos, independentemente do foco ou temática das aulas, participarem e expressarem suas opiniões, entendendo-se como sujeitos históricos atuantes e partes da História.

Referências
BARCA, I. Concepções de adolescentes sobre múltiplas explicações em história. In: _____. (Org.). Perspectivas em educação histórica. Actas das Primeiras Jornadas Internacionais de Educação Histórica. Universidade do Minho, 2001. p. 29-44.
DOMINGUES, P; GOMES, F. Histórias dos quilombos e memórias dos quilombolas no Brasil: revisitando um diálogo ausente na lei 10.639/03. In: Revista da ABPN, v.5, n.11, jul.-out./2013. pp. 05-28.
O que é História Oral. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/acervo/historiaoral>, 2015.
PRIORI, A., et al. Comunidades quilombolas no Paraná. In: ­______. História do Paraná: séculos XIX e XX [online]. Maringá: Eduem, 2012. pp. 47-58.
REIS, Sônia Maria Alves de Oliveira. A inserção dos egressos da educação popular na escola pública: tensão entre regulação e emancipação. 2009. 199 f. Dissertação - UFMG/FaE. Belo Horizonte, 2009. Disponível em: < http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/FAEC-85LMWZ/disserta__o_sonia_fae_ufmg.pdf?sequence=1>. Acesso: 09 fev. 2017.
RODRIGUES, José Ribamar Tôrres. A sala de aula e o processo de construção do conhecimento. Trabalho apresentado no II Encontro de Pesquisa da UFPI. 2002.
SILVA, Lúcia Helena Oliveira. Escravos e Libertos no Paraná. In: ALEGRO et al. Temas e Questões para o ensino de História do Paraná. EDUEL: Universidade Estadual de Londrina, 2008.
TERRA de direitos. Paiol de Telha é o primeiro território quilombola reconhecido pelo Incra no Paraná. Disponível em: <http://terradedireitos.org.br/2014/10/21/paiol-de-telha-e-o-primeiro-territorio-quilombola-reconhecido-pelo-incra-no-parana/>. Acesso: 10 fev. 2017.


5 comentários:

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  2. Prezada Giovana,
    Parabéns por seu trabalho e pelas discussões apresentadas.
    Quais foram as principais dificuldades encontradas pelo grupo na seleção e utilização das fontes ao longo das aulas?

    Att, Rebecca Silva

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    1. Olá Rebecca,
      Muito obrigada pela leitura do trabalho e pela pergunta.
      Buscamos trabalhar de forma variada, com o uso de vídeos, imagens e entrevistas. Com relação aos vídeos, foi complexo encontrá-los da forma como necessitávamos, como reportagem ou documentário, pois há bastantes vídeos sobre o Quilombo Paiol de Telha, por exemplo, mas muitos são produções independentes ou apenas montagens de fotos, o que não nos interessava neste trabalho. Selecionados os vídeos, tivemos a dificuldade de encontrar referências precisas (pois estes estão no YouTube, sem data precisa de publicação, autoria precisa e etc).
      Com relação à História Oral, custamos a encontrar uma entrevista que também atendesse às exigências da temática e do tempo de aula que possuíamos. Inicialmente, queríamos um vídeo em que algum quilombola fosse entrevistado e falasse sobre sua experiência no quilombo, mas não encontramos neste formato. Optamos pela entrevista escrita com o Sr. Paulino, e desviamos um pouco a abordagem do quilombo (já que ele não é quilombola) para focar na questão da História Oral e da curiosa relação que este senhor tem com a Princesa Isabel, sua "musa".
      Desta maneira, concluo que os percalços existiram mas não atrapalharam a execução das aulas de maneira geral. Adaptações foram feitas e assim pudemos trabalhar da melhor forma possível.

      Obrigada,

      Giovana Maria Carvalho Martins

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  3. Olá Giovana Martins, parabéns pelo belíssimo trabalho. Gostaria de saber em qual modalidade de ensino você sentiu mais dificuldade em trabalhar a cultura Afro-Brasileira, se no ensino regular ou na EJA?
    Luciene Fernandes

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